quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Nem Eu Nem Deus


Baseado na experiência pessoal, sem qualquer revelação divina,o budismo, pelas próprias palavras de seu fundador, nega toda existência de um Eu independente.
Esse paradoxo é único na história do pensamento:
O que todas as tradições chamam de 'alma', e em sânscrito, atman - essa entidade permanente que sobreviveria a nós para conhecer outra vida, ou várias outras vidas, essa realidade distinta do corpo, resistente a morte, ao sono, á perda de consciência - o budismo a procura sem encontrar.
Até as noções contemporâneas de um 'eu', de um 'ego', que não supõem a sobrevida de uma alma depois da morte, mas estabelecem um 'em si' tangível, um 'ser-eu' definido e durável, são energicamente refutadas.
Quando dizemos "meu corpo" ou "meu espirito", supomos a existência de um ser, de uma pessoa que possuiria esse corpo e esse espirito, e consequentemente dele se distinguiria.
O mesmo ocorre quando dizemos "meus desejos", "minhas saudades", "meu passado", "minha coragem". Ora, esse 'ser', esse 'em si', o budismo não encontra em lugar algum. E até mesmo o condena, porque vê nessa crença ilusória a origem do egoísmo, do apego as posses, da inveja, do orgulho, da maldade em relação aos outros, que vivem no mesmo erro. Dos conflitos entre os indivíduos ás guerras de extermínio entre as nações, todo o mal que nos angustia nasce desse sonho absurdo, dessa sensação de ser distinto,particular, constante.
Somos como a folha de papel; estamos relacionados a todas as coisas. Podemos nos decompor em certo número de elementos: nossos membros, os fragmentos de nossos membros, os átomos que nos formam, a atividade de nosso pensamento, mas nenhum desses elementos pode pretender á totalidade de um eu . Esse insiste em nos escapar.
Para lutar contra essa inconsistência, que os poetas expressaram algumas vezes de forma magnífica, os homens - diz-nos o budismo -inventaram dois conceitos, um de proteção, outro de conservação.
O conceito de proteção chama-se Deus, pai onipresente e onipotente que nos dá segurança em nossa fraqueza; o conceito de conservação chama-se alma, destinada a viver eternamente, substância de consolo na passagem da vida.
Além de serem erros enraizados, profundamente inscritos em nós por nós mesmos, a idéia de Deus e a idéia de alma são o próprio sinal de nossa ignorância. Essas idéias são erradas e vazias, Elas são "projeções mentais sutis", habilmente envolvidas por palavras. Elas tem um poder quase irresistível, porque nasceram de nossa angustia e necessidade de viver, o homem a elas se apega com tanta força que não quer escutar nem mesmo uma palavra que a isso se oponha.
E, portanto, para atingir o despertar, é indispensável delas se desfazer.
O Buda Shakyamuni deu-se perfeitamente conta do aspecto revolucionário - e muito difícil de ser aceito - dessa crítica aos sentimentos e ás idéias recebidas. Assim disse ele: "Os homens que estão submersos em paixões e envoltos em uma massa de obscuridade não podem ver essa verdade que vai contra a corrente, que é sublime, profunda, sutil e difícil de compreender".
Ir 'contra a corrente' é o mínimo que se pode dizer, pois estamos todos muito intimamente persuadidos de sermos, cada um, um indivíduo particular e permanente. A maior parte de nossas frases começam por eu, e em francês até muitas vezes por moi, je.
Tudo nos diz que somos feitos de nossas ações passadas, de nosso estado presente, de nossos projetos para o futuro, que nossas transformações são apenas superficiais, e o essencial, em cada um de nós, permanece.
"Você não mudou" é uma das frases que escutamos com maior freqüência a nossa volta.
Basta entrar em uma grande livraria e contar o número de obras explicativas e demonstrativas consagradas aos problemas do 'eu'. As estantes estão transbordando. Quando nessas obras mergulhamos, percebemos quão variadas e decepcionantes são, pois estranhamente nenhum dos casos descritos parece se aplicar ao nosso.
De qualquer maneira, esse amontoado de análises não cessará tão cedo. A própria arquitetura do direito ocidental moderno baseia-se principalmente no indivíduo distinto da massa - ameaçado e ao mesmo tempo precioso, um indivíduo perceptível e definível.
O budismo nos afirma com obstinação o contrário.
Nenhum vestígio de substância permanece imutável em nós. Vivemos numa corrente ininterrupta de relações, que condicionam a cada instante nossa existência. Não temos nenhuma possibilidade de falar do nosso 'eu', do nosso 'ser'. Os budistas não podem acompanhar Descartes e seu famoso 'logo'. Nada nos autoriza a passarmos do pensamento ao 'ser', que são dois elementos do mesmo fluxo variável. Em vez de afirmarmos "Penso, logo existo", no máximo poderíamos dizer, no mesmo instante em que falamos: "Penso, logo penso", ou então, como Nietzsche, dizer-mos "Algo pensa".
Esse deslocamento do ego é acompanhado evidentemente de uma profunda crítica a memória e á noção de passado. Esse sentimento de continuidade que toda vida dá é uma ilusão suplementar, um jogo complacente do espirito. Tudo o que se refere a nosso passado - que a todo instante reconstituímos e modificamos através do pensamento - é uma abstração, uma construção mental, assim como o futuro, e com dificuldade e prudência podemos falar do momento presente.
Posto que, ainda assim, é preciso admitir que existimos (senão a conquista do despertar se torna incompreensível), o Buda admite que somos constituídos de 'cinco agregações'. Sem entrar em detalhes, porque são complexos, nomeemos essas cinco agregações que nos compõem, e sobre as quais repousa nossa existência no mundo:
O Corpo (ou caráter material), a sensação, a percepção, a conformação (que se chama também de construções) e a consciência. Mas Buda diz, logo depois, ao falar a seus cinco primeiros discípulos:
"O corpo não é o ser', a sensação não é o 'ser', as construções não são o 'ser', tampouco a consciência é o "ser".....
Nenhum dos agregados que nos compõem (apesar de algumas escolas defenderem o contrário), portanto, podem pretender ser nós mesmos. Mas e se for preciso escolher? Se precisarmos obrigatoriamente de um suporte, de um ponto de apoio? Aí, então, diz Buda, sem duvida é melhor tomar o corpo, porque pelo menos ele subsiste algum tempo, enquanto que "aquilo que chamam de espírito produz-se e dispersa-se numa perpétua transformação".
Desconfiança, então, com relação a nosso pensamento. Desconfiança total com relação a nossa 'alma'.
Todos os continuadores do Desperto, não importa a que escola budista estivessem ligados, insistiram nesse ponto: o 'eu' é ilusão e a verdadeira fonte do sofrimento.
(de um amigo - acredito que esse texto seja prefácio de algum livro...)

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Perdido ?


"E agora estou perdido!
Devo parar?
- Não, se paras, estás perdido."
(Goethe, in "Poemas" )

A vida é repleta de incertezas e dúvidas. Este constante mistério a ser vivido, as surpresas que se escondem a cada passo, em cada esquina, em cada caminho e em cada lugar tornam-na uma aventura fantástica.
O desconhecido, a insegurança sobre o que pode acontecer no próximo segundo torna-a plena e transbordante. Não quero saber o que me reserva o amanhã, não quero um caminho conhecido, experimentado, vivido, de segunda mão; eu quero descobrir os segredos do novo, do diferente, do que está além do conhecimento de massa; eu quero saborear a vida aos poucos, nos seus mínimos detalhes, na sua mais profunda essência. Descobrir e vencer as dificuldades, os perigos e as armadilhas; trilhar as encostas mais íngremes, os picos mais altos e os abismos mais profundos. Ser o anoitecer e os alvorecer, o sol e a lua, o dia e a noite, o córrego, o rio e o mar; a montanha e a planície; voar junto com os pássaros, nadar junto com os peixes, andar sobre a terra molhada, o gelo, a neve e o deserto escaldante. Sentir a vida, a energia fluir como um rio; sentir o por do sol, colorindo as nuvens preguiçosas, com o canto melodioso da cigarra de verão; o namoro dos pássaros, fingindo brigas, antes de se recolherem sob as folhas da frondosa árvore. Caminhar pelas trilhas sentindo o cheiro do mato molhado; beber a água da fonte colhida pelas mãos em concha; sentir as frias gotas de chuva molhando o rosto, os braços, os cabelos... olhar para o alto e senti-las batendo nos olhos e nos lábios. Sentar na relva e namorar a grama, os arbustos,as árvores, as pedras, as formigas, os grilos, o louva-a-deus e todos aqueles insetos coloridos; brincar na areia da praia, fazer castelos de areia, jogar água nos amigos, sentir o riso, a espontaneidade, a alegria de viver, a liberdade de ser; olhos nos olhos, sintonia de almas, e... naquela fração de segundos, a comunhão, a luz e a percepção da eternidade.Não, não estou perdido. Somente está perdido quem pára. Somente está perdido quem não ousa, somente está perdido quem tem medo de viver.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Apenas um existir



É preciso treino, disciplina e vontade para construir o ego, o ego perfeito, do tamanho do universo. É preciso ter respostas racionais e lógicas para todas as perguntas, para todas as dúvidas, até que já não existam perguntas e dúvidas. É preciso dominar a natureza em geral, os instintos em particular e treinar a mente, continuamente, diuturnamente, segundo uma única verdade que resulta da aliança da razão e da fé, até ter certezas, certezas absolutas, inabaláveis, uma convicção tão profunda que justificará matar ou morrer.
 Este homem é um ego perfeito, ele só tem certezas, nenhuma dúvida. Foram homens desse quilate que promoveram o genocídio dos Armênios e o holocausto,  ou as perseguições e morte de milhões pelos comunistas Stalin, Mao Tsé-Tung e Pol Pot. Não houve grande diferença entre as acusações de Hitler aos judeus e a perseguição de Stalin ao fazendeiros ucranianos. Um e outro só tinham certezas, nenhuma dúvida. Estavam embriagados, embriagados pelas suas convicções, embriagados pelo poder. Hipnotizados por si mesmos. Cegos e surdos, totalmente cegos e surdos para a verdadeira vida.

A vontade de poder tem limites. A realidade vai impor-se inexoravelmente. Os ventos do destino sopram, às vezes, como uma leve brisa, outras como um furacão, apenas com a força necessária para acordar-nos do nosso profundo sono. Despertar-nos para a realidade, para a verdadeira vida que não tem lógica nem coerência, que é apenas um existir.