segunda-feira, 14 de maio de 2012

Diógenes , o cão Cínico


A cena em que Diógenes de Sinope sai pela rua, em pleno dia, com uma lanterna acesa e pronunciando a frase “procuro o homem” é uma das mais emblemáticas da história da filosofia. 
Emblemática pelo que ela tem de inusitado, surpreendente e provocador, mas mais emblemática ainda pelo que ela representa do ponto de vista da intencionalidade do próprio Diógenes. 
O ato e o dito são evidentemente sarcásticos, mas tem o poder de desnudar uma realidade que insistia em ficar escondida sobre o manto da presunção e falsidade. 
O “procuro o homem” tem a força do desmascaramento da realidade ancorada em valores ocos, que já não diziam do verdadeiro ser em uma cultura decadente. Tem ainda a força provocativa positiva no sentido de anunciar que o homem verdadeiro é possível de ser, desde que dele se retire o que o prende às exterioridades materiais ou convenções sociais impostas, ancorando-se somente na autenticidade de viver.
( Recusa de todos os adornos, falsidades e aparencias que constituem o ser humano que vive em sociedade) 
Era esse o homem que Diógenes procurava. 
Ele procurava o homem com letra maiúscula, autêntico e coerente, o homem (e mulher) para além do aparecer, dos adornos externos do ter, poder e das convenções sociais. Diógenes procurava o homem reconciliado com sua genuína natureza, vivendo segundo essa natureza, sem apelos, subterfúgios ou bengalas que o desfigurassem. Essa condição e somente essa o faria feliz. 
Como em lugar nenhum via alguém assim, ironicamente, procurava-o.
Viver segundo a natureza, livre das convenções sociais (e religiosas) e daquilo que adere ao homem desde fora, vivendo sob o critério da interioridade subjetiva, eis o que possibilita, para Diógenes, a reconciliação do homem consigo mesmo e, por isso, feliz. 
O não ter nada de próprio não é um agir contra a natureza, pelo contrário, é um agir em favor da natureza. Para viver bem e feliz não é necessário bem viver, no sentido de possuir meios de acomodação e conforto, mas viver na simplicidade pois, como ele proclamava frequentemente, “‘os deuses haviam concedido aos homens meios fáceis de vida, porém os homens perderam de vista este benefício, pois necessitam de bolos de mel, de ungüentos e de coisas semelhantes’” .
 A vida pobre do homem Diógenes, que tem como habitação um barril, é uma contrapartida prática sinalizadora de uma verdade que crê ser superior da verdade convencional. Agora, viver segundo a natureza significa para Diógenes, viver segundo a autonomia e liberdade. 
O propósito de Diógenes é justamente trazer à vista aqueles meios fáceis de vida que todos, e não apenas alguns, têm condições de viver porque não exige nada além daquilo que a natureza oferece. Viver segundo a natureza significa bastar-se-a-si-mesmo e não-ter-necessidade-de-nada. 
Essa autarquia quando conquistada não pode ser perdida, pois independe das coisas exteriores que vem e vão. A autarquia, ou o bastar-se-a-si-mesmo possibilita a mais ampla liberdade, tanto da palavra quanto da ação. 
E nisso Diógenes é direto e conseqüente. Ele considerava que o que prende o homem é, sobretudo, o dinheiro, símbolo da posse exterior, e por conta disso definia o amor ao dinheiro como a “metrópole de todos os males” . É como se dissesse com isso que ou se escolhe entre a autonomia e a liberdade ou se escolhe a dependência cujo dinheiro é o seu símbolo máximo. 
O episódio de Diógenes e Alexandre, o Grande é paradigmático na compreensão da autonomia e da indiferença de Diógenes frente ao mundo. O grande conquistador poderia oferecer a Diógenes tudo o que quisesse de material e talvez de poder, mas Diógenes só quer uma coisa:
 “Deixe-me o meu sol”. 
Na verdade é tudo o que ele precisa, e é de graça, e Alexandre não pode dar, somente retirar com a sua sombra. 
"Se não fosse Alexandre, queria ser Diógenes"
 Não somente o dinheiro e o poder são para Diógenes inibidores da liberdade porque lhe exigem um alto preço, mas também qualquer ação que exige um comprometimento posterior e de alguma forma lhe arranque a liberdade. Por isso ele “elogiava os que estavam na iminência de casar mas não casavam, os que estavam a ponto de realizar uma viagem porém não viajavam, os que pensavam em dedicar-se à política mas não se dedicavam, os que desejavam constituir família e não a constituíam, os que se preparavam para conviver com os poderosos mas não se aproximavam deles”. 
É claro que essa postura é paradoxal, mas Diógenes não se preocupava em resolver paradoxos, vivia-os simplesmente. 
Para Sócrates a natureza do homem é a sua alma, entendida essa como a inteligência, consciência e interioridade. Diógenes aceita essa tese de Sócrates, mas vai além, radicalizando-o e de alguma forma revolucionando-o. Sócrates também vivia na simplicidade e sem qualquer conforto, suportando todo tipo de adversidade corporal em nome da excelência moral. Mas Sócrates louvava a virtude da alma advinda do conhecimento e da ciência. 
E aí está a diferença com Diógenes. Este desprezava as ciências, as doutrinas, os discursos articulados e lógicos contrapondo um conhecimento improvisado, circunstanciado, inventivo e bem humorado. 
Há uma filosofia que fundamenta essa atitude, qual seja, a de que a excelência moral ou a virtude é mais uma questão de ação do que uma questão de discurso e de conhecimento. 
A via da ciência e do discurso é o caminho mais longo para a vida boa, para a vida ética do verdadeiro homem. É nesse sentido que se pode compreender o desprezo que Diógenes nutria pela metafísica de Platão. 
Diógenes Laertios nos informa que Diógenes ao ouvir as preleções de Platão sobre a “mesidade”, a “tacidade”, ironicamente teria dito a Platão que ele via a mesa e a taça, mas não a mesidade e a tacidade. Temos aí uma postura que hoje poderíamos identificar com o pragmatismo na medida em que o conhecimento tem que estar a serviço da ação, em vista de um resultado, e não em vista a si mesmo. No caso de Diógenes o conhecimento devia estar a serviço de um resultado prático no nível ético.
Além disso, o “procuro o homem” tem um caráter de crítica às incoerências éticas vividas no seu tempo (e em nosso tempo). Dizer algo e fazer o seu contrário é o que Diógenes identifica como uma vida inautêntica. Nesse sentido o “procuro o homem” significa dizer: procuro o homem coerente e autêntico, o que em outras palavras significa dizer que procurava o homem virtuoso no pleno sentido. Sobre isso Laertios nos dá uma informação importante dizendo que Diógenes “admirava-se vendo os críticos estudarem os males de Odisseus apesar de ignorarem seus próprios males; ou os músicos afinarem as cordas da lira, sem cuidarem de obter harmonia de sua alma; ou os oradores cansarem-se de falar em justiça, mas não a praticarem; ou os avarentos esbravejarem contra o dinheiro, enquanto na realidade o amam exageradamente. 
Diógenes condenava as pessoas que, embora louvando os justos por estarem acima das riquezas, invejavam os homens muito ricos. Revoltavam-no os sacrifícios aos deuses pela saúde, porque durante os próprios sacrifícios as pessoas se banqueteavam em detrimento da saúde, e se admirava quando os escravos, embora vendo seus senhores comendo desbragadamente, nada subtraíam das iguarias” .
O “procuro o homem” não tem, portanto, uma conotação teórica, metafísica, no sentido de uma busca por uma definição do que seja a essência do homem. O “procuro o homem” tem muito mais uma conotação ético prática coerente, nos moldes de vida segundo a natureza . O não ter necessidade, o bastar-se-a-si-mesmo, e levar uma vida coerente segundo o mínimo, possibilita uma total liberdade imediata, sem recorrer a mediações de qualquer nível. Liberdade que para Diógenes é tanto liberdade de expressão quanto liberdade de ação.


Os cínicos eram conhecidos por serem francos e diretos (tal como um cão que late e abana o rabo), por saberem distinguir um filósofo do não-filósofo (tal como o cão distingue o amigo do inimigo), mas acima de tudo por viverem em público como os cães, livres e despudoradamente indiferentes às normas estabelecidas. O que a sociedade grega via com pudor e vergonha, os cínicos viam com naturalidade e despudor. O epíteto canino, aparentemente insultuoso, era também reivindicado pelos cínicos pela forma de pensar contra a deterioração , contra as regras deterioradas, contra os valores deteriorados da pólis, contra cultura deteriorada dominante. 
Por isso Diógenes se denominava "o cão" ( Kyon ).


(Texto de Gilmar Zampieri )


2 comentários:

  1. “‘os deuses haviam concedido aos homens meios fáceis de vida, porém os homens perderam de vista este benefício, pois necessitam de bolos de mel, de ungüentos e de coisas semelhantes’” .Genial. Diógenes foi o que chamaria de um "Iluminado". Aquela iluminação que só a plena liberdade, segundo a segundo, trás. Aquele estado raro entre os humanos, estado que aliás os transcende. Os homens preferiram os bolos de mel à liberdade. Esquecem que, na natureza, a fome é parte da dieta. Grande, grande artigo!!!!

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  2. ... Me destes uma grande ideia: Buscar fragmentos destes iluminados, dos Pré-socráticos, aqueles que incomodavam. O Livro de Diogenes Laertes, citado no texto, deve ser o "Vida e Obra de Filósofos Notáveis" (ou Homens Notáveis - o adquiri há uns 10 anos mas não o trouxe, vou conferir o título). Laertes era Romano, escreveu este livro como um adorável "fofocarium" - como se contasse fofocas filosóficas... Vale a pena!!! Abraços!!!

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