domingo, 9 de junho de 2013

Morrer

" Qual a natureza desse "malcheiroso pedaço" de egoísmo ou personalidade, que tem de se arrepender tão apaixonadamente e tão completamente morrer antes que possa haver um verdadeiro conhecimento de Deus na pureza do espírito? A mais seca e cautelosa das hipóteses é a de Hume. "A humanidade", diz ele, "nada mais é que um feixe ou conglomerado de diferentes percepções, que se sucedem umas às outras com uma rapidez inconcebível, e estão em perpétuo fluxo e movimento". Uma resposta quase idêntica foi dada pelos budistas, cuja doutrina de anatta é a negação de qualquer alma permanente, existente atrás do fluxo da experiência e das várias skandhas psicofísicas (em íntima correspondência com os "feixes" de Hume), que constituem os mais perduráveis elementos da personalidade. Hume e os budistas dão uma descrição suficientemente realista do egoísmo em ação; mas não explicam como e por que os feixes se tornaram feixes. Porventura os seus átomos constitutivos da experiência ajuntaram-se de comum acordo? E, se assim for, por que e por que meios e dentro de que espécie de universo não espacial? Dar uma resposta plausível a estas questões, em termos de anatta, é tão difícil que fomos forçados a abandonar a doutrina em favor da noção de que, atrás do fluxo e dentro dos feixes, existe uma espécie de alma permanente, através da qual a experiência é organizada e que, em troca, faz uso dessa experiência organizada para se tornar uma criatura particular e uma personalidade única. Este é o ponto de vista do hinduísmo ortodoxo, do qual o Budismo compartilhou, bem como todo o pensamento europeu desde a época anterior a Aristóteles até os dias atuais. Considerando que a maioria dos pensadores contemporâneos tentam descrever a natureza humana em termos de uma dicotomia resultante da interação da psique e do físico, ou uma inseparável totalidade desses dois elementos dentro de seres particulares corporificados, todos os expoentes da Filosofia Perene fazem, de uma ou outra forma, a afirmação de que o homem é uma espécie de trindade composta de corpo, psique e espírito. O egoísmo ou personalidade é um produto dos dois primeiros elementos. O terceiro elemento (aquele quidquid increatum et increabile, como Eckhart o chamava) é semelhante, ou mesmo idêntico ao espírito divino que é a Base de todos os seres. A finalidade última do homem, a finalidade da sua existência, é amar, conhecer e unir-se à Divindade imanente e transcendente. E essa identificação do ser com um não-ser espiritual só pode ser alcançada "morrendo" para o egoísmo e vivendo para o espírito. "

- Aldous Huxley

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