sábado, 4 de junho de 2011

Crime e Castigo (e a linguagem poético-mística...)


"Muitas vezes vos ouvi falar daquele que comete um crime como se não fosse um de vós mas um intruso no vosso mundo.
Mas digo-vos que, tal como os santos e os justos não se podem erguer mais alto do que o mais alto que existe em cada um de vós, também os maus e os fracos não podem cair mais baixo do que o mais baixo que existe em vós. E tal como uma simples folha só amarelece em conjunto com toda a árvore, Também aquele que comete um crime não o pode fazer sem a anuência secreta de todos vós.
Como numa procissão, caminhais juntos em direção ao vosso eu interior. Vós sois o caminho e o caminhante e quando um de vós cai, cai por aqueles que vêm atrás, para os avisar da pedra que encontraram no caminho. E cai por aqueles que vão à sua frente, que, embora mais rápidos e seguros, não estão livres de tropeçarem na mesma pedra.
E notai que, embora a palavra vos pese no coração:
O assassinado não está isento de responsabilidade pelo seu próprio assassínio, e o roubado não está isento de culpas por o ter sido. O justo não está inocente dos feitos do malvado, e o que tem as mãos limpas não está limpo dos atos do culpado. Sim, o culpado é por vezes vítima do ofendido.
E ainda mais vezes é o portador do fardo dos inocentes e retos. Não podeis separar o justo do injusto e o bom do mau;
Pois eles andam juntos ante a luz do sol, tal como juntos são tecidos os fios brancos e negros;
E quando o fio negro quebra, o tecelão examina todo o tecido e também todo o tear.
Aquele que quiser flagelar o ofensor olhe para o espírito do ofendido. E se algum dá vós punir em nome do que é justo e cortar com o machado a árvore do mal, deixe então que se vejam as raízes;
E encontrará as raízes do bom e do mau, do que dá frutos e do que não dá , entrelaçadas no coração silencioso da terra. E vós, juizes, que quereis ser justos, que condenação ireis dar àquele que, embora honesto de corpo, é um ladrão de espírito? Que castigo ireis dar àquele que flagela a carne e também flagela o espírito? Como procedereis com aquele que nos seus atos é falso e opressor, mas que, no entanto, é também enganado e oprimido? E como ireis punir aqueles cujos remorsos são maiores do que os crimes que cometeram? Não será o remorso a justiça que é administrada pela própria lei que quereis servir?
No entanto, não podereis impor o remorso ao inocente, nem arrancá-lo do coração do culpado. Subitamente, à noite, ele convocará os homens para que olhem para si próprios. E vós, que deveis entender a justiça, como o podereis fazer a menos que olheis para os fatos à plena luz?
Só assim sabereis que o ereto e o caído são um único homem no crepúsculo entre a noite da sua pequenez e o dia da sua espiritualidade, e que a pedra mãe do templo não é mais alta que a mais funda pedra dos seus alicerces."

(trecho do livro O Profeta,de Gibran Khalil Gibran)
- Gibran, no alto de uma profunda compreensão, nos fornece em forma poética e mística, a necessidade em nos vermos como agentes das ações e reações , onde normalmente procedemos de forma inconsciente. Quem dispõe de coragem suficiente em olhar-se?

Um comentário:

  1. barbalhos!!!! Háq séculos li este texto, não me lembrava que era do Kalil. Exemplo de uma lucidez gigantesca, sobre-humana... Obrigado - e obrigado por teres me mandado os livros!!! Grande texto e escolha.

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